Meteu as mãos nas suas coxas e sussurrou alguma coisa que o deixou
excitadíssimo. E eram aqueles olhos quase em cima dele como duas
presas despretensiosas e mortais. Ele engoliu o chope como se
estivesse bebendo água ardente e quase sacudiu a cabeça para
acionar a ignição do raciocínio, da lógica, mas aquelas mãos na
coxas, aquele sussurro e, puta-que-pariu!, aqueles olhos! Eram demais
para ele!
Levantou-se da cadeira como quem acorda de supetão por um susto que
não se sabe de onde veio, foi até o banheiro jogar uma água no
rosto, olhar para dentro da consciência, visível apenas quando de
frente ao espelho, e voltar com alguma dignidade à mesa. “Que
horas faltam, hein? Será que ninguém vai chegar?” Só deus sabe o
quanto ele queria que a hora passasse. Seus amigos não chegavam e o
marido da Vanessa, sua, agora, ex-amiga, também não dava sinais de
vida. E eram os dois ali, naquela mesa de bar, aipim frito com carne
seca desfiada e acebolada, uma terceira rodada de chope da Brahma com
espuma cremosa e na medida, aquele calor do Rio de Janeiro, a praia
em frente com cheiro de sal e sensualidade, e ele e ela. Ela com as
mãos na sua coxa (outra vez!), ele a ponto de transpirar,
constrangido pela situação de estar excitado e o cagaço de ser
pego – uma mistura psicotrópica.
Ela encostou um dos cotovelos na mesa e descansou o rosto na mão
fechada, feito um soco, a outra continuou na coxa num movimento de
ida e volta. Ele falou alguma coisa sobre a luz do ambiente ser de
uma cor esquisita e simpática à penumbra. Ela sorriu e fechou os
olhos como que navegando em outros prazeres ou deliciando-se com
aquele momento tão insípido para ele mas que, talvez pelo sangue
agitado, talvez pelo escancarar da porta de Freud, detivesse-no ali,
daquela forma, mesmo sabendo-se arrastado para o que não tem mais
volta.
“Eles não vêm, não é mesmo?”
“Acertou na mosca”.
E beberam a quarta rodada de chope. Ele pediu mais colarinho do que o
de costume e longe do que marca a etiqueta da boa tirada. Era um modo
de se iludir, de enganar a si mesmo já que beberia outras seis
rodadas depois dessa; é como furar o filtro do cigarro para diminuir
o veneno e fumar o maço inteiro.
Ela pediu uma caipirinha, mas de vodca. “Uma caipivodca, por
favor”. Ele mandou tudo aos caralhos e decidiu por um uísque.
“...duplo e só duas pedras de gelo”. Foi a última coisa que
conseguiu se lembrar depois de abrir os olhos no seu apartamento e
reparar que ainda usava sapatos. Pedira outras duas doses, mas isso
era irrelevante, pois só nós sabemos disso. O gosto de guarda-chuva
o incomodava e teve que ir ao banheiro, tomar um banho, um café e
relaxar, talvez na praia, seu habitat natural, uma água de coco e
uma cerveja pra curar a ressaca.
Pensou em ligar para ela, mas isso não seria necessário.
Encontrou-a abraçada ao seu vaso sanitário com a maquiagem do rosto
nas beiradas da lousa. O uísque de boa qualidade foi definitivo para
ele estar de pé. Vodca vagabunda foi determinante para a catástrofe
dela. Jogou-a no chuveiro, ambos de roupa e tudo, ele só percebeu
que ainda estava de sapatos por causa do desconforto nos pés
escorregadios. Tirou-os. Ela percebeu o momento e tirou, com alguma
dificuldade, a calça jeans que ele usava e ele nem quis saber de
tirar o vestido que ela estava. E treparam por longos minutos debaixo
daquela água e durante o dia inteiro na cama úmida de chuveiro e
suor. E foi assim, entre o uísque, a cerveja, a caipivodca e
o sexo, por uns bons e profundos três anos. Ela se mudara para o
apartamento dele e ele nunca mais viu o seu amigo. Está casado com
uma professora de química e isso foi tudo o que soube entre o pão
comprado na padaria embaixo do seu apartamento e a banca de jornal
que lhe passou o último número da Times.
Um belo dia, quando resolveu chegar mais cedo em casa. Trouxe uma
caixa de morangos e um espumante. Encontrou-a olhando pro espelho,
daquele jeito que se olha para a consciência. Ela percebeu-o eternos
segundos depois. “Você já chegou? Que surpresa!” Mas não houve
convencimento nessa exclamação e ele logo indagou se ela sairia,
maquiada e vestida adequadamente para um encontro. “Existe maneira
adequada de se vestir para um encontro?” Ele sorriu, nenhuma
tristeza ou raiva. “A última vez que você o vestiu fizemos sexo
no banheiro com ele junto, de coadjuvante”. Era verdade. “Você
volta para casa?”, ele completou, mas já sabia a resposta. “Nunca
me maquio na sua ausência? Será que eu só saio com você?”,
tentou ela, mas também já sabia o porquê da certeza dele. Era a
primeira vez que ela não dizia, que se espantava, que agredia na
impossibilidade de agir com naturalidade.
Mas no final era o vestido.
E tinha aquele olhar.
Aquele olhar.
“Já tem um lugar pra ficar depois disso?”
“Adeus, Carlos”.
“Adeus, Vanessa”.
Ela mandou alguém pegar as suas coisas do apartamento e nunca mais
se viram. Assim como nunca mais vira o Sérgio, que casara com uma
professora de química. E ele mesmo casou depois de um tempo. E todos
foram felizes enquanto puderam e infelizes também, num ciclo de sete
inseparável, preciso. E todos foram o que puderam ser, o que se
deixaram ser. E a vida continuou, o trânsito fez barulho e a cerveja
continuou aumentando de preço enquanto a vodca continuava vagabunda,
sem pontos finais ou mistificações.